Augias, rei da Élida, região a oeste da Arcádia, tinha grandes rebanhos de cavalos, mas não cuidava de seus estábulos, que acumularam uma colossal quantidade de estrume ao longo dos anos. Hércules conseguiu lavá-los num só dia, usando a água de dois rios, cujos cursos desviou com sua força.
O termo “sombra” na psicologia é um dos mais famosos entre as pessoas comuns, normalmente associado a ideias como “nosso maior inimigo” ou “o lado escuro interior” e como “aquilo que não gostamos no outro, na verdade é a nossa própria sombra interior”. Nesse texto vamos nos aprofundar no assunto, para primeiro entender o que a “sombra” é dentro do contexto da nossa psique e como podemos lidar com ela para que seja útil em nossa vida:
A sombra é uma crítica que o nosso inconsciente faz sobre a postura do nosso consciente ou personalidade que estamos demonstrando ao mundo.
A sombra não é o todo da personalidade inconsciente: representa qualidades e atributos desconhecidos ou pouco conhecidos do ego — aspectos que pertencem sobretudo à esfera pessoal e que poderiam também ser conscientes. Sob certos ângulos a sombra pode também consistir em fatores coletivos que brotam de uma fonte situada fora da vida pessoal do indivíduo (escola, religião ou costumes familiares por exemplo).
Quando uma pessoa tenta ver a sua sombra, ela fica consciente (e muitas vezes envergonhada) das tendências e impulsos que nega existirem em si mesma, mas que consegue perfeitamente ver nos outros — coisas como egoísmo, a preguiça mental, a negligência, as fantasias irreais, as intrigas e as tramas, a indiferença e a covardia, o amor excessivo ao dinheiro e aos bens — em resumo, todos aqueles pequenos pecados que já se terá confessado dizendo: “Não tem importância, ninguém vai perceber, e de qualquer modo, as outras pessoas também são assim”.
Se você se enche de raiva quando um amigo lhe aponta um defeito, pode estar certo de que aí se encontra uma parte da sua sombra, da qual você não tem consciência. É natural que nos sintamos aborrecidos quando gente que “não é melhor” do que nós vem nos criticar por defeitos relacionados à sombra. Mas o que dizer quando é o próprio sonho? — Juiz interior do próprio ser — que nos reprova? É o momento em que o ego fica encurralado e reduzido, em geral, a um silêncio embaraçoso. Começa, depois, um lento e doloroso processo de autoeducação, tarefa que, pode-se dizer, equivale psicologicamente aos trabalhos físicos de Hércules. A primeira tarefa desse infortunado herói, lembremo-nos, foi limpar em um só dia os estábulos de Augias, onde centenas de cabeças de gado haviam deixado o seu esterco durante décadas — uma tarefa tão imensa que deixaria o mortal comum desencorajado só de pensar nela.
A sombra não consiste apenas de omissões. Apresenta-se muitas vezes como um ato impulsivo ou inadvertido. Antes de se ter tempo para pensar, irrompe a observação maldosa, comete-se a má ação, a decisão errada é tomada e confrontamo-nos com uma situação que não tencionávamos criar conscientemente. Além disso, a sombra expõe-se, muito mais do que a personalidade consciente, a contágios coletivos. O homem que está só, por exemplo, encontra-se relativamente bem; mas assim que vê “os outros” comportarem-se de maneira primitiva e maldosa (ou apenas diferente), começa a ter medo de o considerarem tolo se não fizer o mesmo. Entrega-se então a impulsos que na verdade não lhe pertencem.
Nos sonhos e nos mitos são onde, geralmente, a sombra nos aparece, criticando a forma como estamos nos comportando ou nos mostrando para o mundo. O seguinte sonho pode ser um bom exemplo para essas observações. A pessoa que o sonhou era um homem de 48 anos que tentava viver por ele e para si mesmo trabalhando muito, disciplinando-se e reprimindo o prazer e a espontaneidade com uma intensidade bem maior do que seria aconselhável à sua natureza:
Eu morava em uma casa muito grande, com vários quartos e corredores, que levavam a portas e salas a qual nunca tinha visto. O que me era estranho, era o fato de nenhuma dessas portas terem fechaduras ou trancas, qualquer um poderia entrar facilmente. Continuei minha investigação e acabei parando em um jardim muito bonito, com portões para várias ruas diferentes. Logo passaram por mim no gramado três belos cavalos. Eram animais fortes, bonitos e fogosos. Mas, não traziam cavaleiros, teriam fugido de uma tropa do exército?
O fato do sonhador julgar que os cavalos teriam evadido de uma tropa militar (o auge de uma doutrina disciplinar), mostra um impulso do inconsciente em ser livre para explorar todo um potencial natural de descobertas e aventuras, mas que é subjugado sobre um julgamento de regras e doutrinas rígidas, o impedindo para sempre de uma integração total com o meio natural. Percebam que o sonhador reconhece a força e o potencial que o cavalo pode ter, desde que estejam debaixo de uma regra de disciplina. Mas o próprio estado saudável dos animais, mostra que eles podem ser o máximo do que podem, sem qualquer rigidez ou “algo” para dizer o que devem ou não.
Depende muito de nós mesmos a nossa sombra tornar-se nossa amiga ou inimiga. Como os sonhos da casa inexplorada exemplificaram, nem sempre a sombra é necessariamente um elemento de oposição. Na verdade, ela se parece com qualquer ser humano com que temos de nos relacionar: segundo as circunstâncias, algumas vezes cedendo, outras resistindo, outras, ainda, dando-lhe amor. A sombra só se torna hostil quando é ignorada ou incompreendida.
Algumas vezes, bem raramente aliás, o indivíduo sente-se impelido a dar livre curso ao pior lado da sua natureza, reprimindo o que há de melhor nela. Nesses casos a sombra aparece-lhe nos sonhos como uma figura positiva. Mas para quem se entregar realmente a suas emoções e sentimentos naturais, a sombra poderá surgir como um intelectual frio e negativo; personifica, assim, julgamentos venenosos e pensamentos negativos que estiveram contidos. Portanto, seja qual for a forma que tome, a função da sombra é representar o lado contrário do ego e o encarnar, precisamente, os traços de caráter que mais detestamos nos outros.
Acima, o selvagem garanhão branco do filme francês Crin Blanc (1953). Cavalos selvagens simbolizam, inúmeras vezes, impulsos instintivos incontroláveis que podem emergir do inconsciente — e que muitas pessoas tentam reprimir. No filme, o cavalo e o menino estabelecem um estreito relacionamento (apesar de o cavalo ter a vida selvagem de sua manada). Mas vários cavaleiros partem para capturar os cavalos selvagens. O garanhão e o menino que o monta são perseguidos durante muitos quilômetros; por fim veem-se encurralados numa praia. Para não serem capturados, ambos mergulham no mar e são arrastados pelas águas. Simbolicamente, o final da história parece representar uma fuga para o inconsciente (o mar) como meio de escapar da realidade do mundo exterior.
Descobrindo e convivendo com a sombra:
O seguinte exercício, nos ajuda a descobrir, entender, e conviver com a nossa sombra:
Em um papel, preencha as respostas para as seguintes perguntas (a ideia do papel é que você possa refletir sobre as respostas que colocou):
É importante tentar ter algum grau de sinceridade aqui, não tente responder de uma forma politicamente correta, apenas imagine e transcreva o que vem a sua mente.
O Eu criança:
- Qual a primeira lembrança que vem à sua mente, quando tenta recordar a primeira vez que fez algo errado de propósito, mesmo sabendo que não deveria fazer aquilo?
- Qual a primeira lembrança que vem à sua mente, quando percebeu que estava fazendo algo apenas por que seu pais diziam que deveria ser feito, mesmo você sabendo que aquilo não te agradava ou concordava?
- Como você tratava ou era tratado por seus colegas, em especial na escola? Sente culpa por algo que fez, ou ao contrário, se sente chateado pela forma como te tratavam, humilhavam etc. Essas lembranças te magoam?
No outro:
- Quem é a pessoa que você mais despreza? Imagine três características do porquê você a odeia.
- Nessa mesma pessoa do item anterior, você consegue imaginar três características admiráveis?
As perguntas acimas, ajudam a sabermos elementos da nossa personalidade que nos envergonhamos ou que nos orgulhamos. As próximas perguntas, nos ajudam a entender a forma como nossa sombra pode ser projetada:
O espelho negro
Imagine-se olhando diretamente para a sua sombra, como se esse aspecto psíquico se manifestasse na sua frente como uma pessoa:
- Como ela seria?
- Quais são as características dela? Como você a vê? Alta, magra, gorda, forte etc.
- Quais poderes mágicos ou não ela tem que podem te afetar?
- Como ela agiria se ela fosse livre por aí, sem estar presa a você? Para onde iria, e por quê?
Aprende a nascer desde a dor e a ser maior,
que o maior dos obstáculos.
Veja-te no espelho de ti mesmo.
Começa a ser sincero contigo mesmo. Reconhecendo-te pelo teu valor, pela tua vontade e por tua fragilidade para justificar-te.
Recolhe-te dentro de ti mesmo, mais livre e forte,
e deixarás de ser um boneco das circunstâncias,
porque tu mesmo és teu próprio destino
Conclusão
Não é raro encontrarmos na internet pessoas afirmando que precisamos derrotar, eliminar a nossa sombra. Além disso ser impossível, a melhor postura que podemos ter não é a de querer exterminá-la, e sim ter consciência de que ela está lá, saber quais são os pontos fortes dela, por que esses pontos fortes, são geralmente os nossos pontos fracos, e, sabendo ter uma boa convivência com esse aspecto da nossa psique, poderemos caminhar a um processo completo de individuação, ou seja, todas as partes da nossa mente e subconsciente equilibrados e amadurecidos.
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Psicologia Sombra
Fontes e Referências
O Homem e seus Símbolos — Carl G. Jung (Editora Harper Collins);
Os testes para descoberta da sombra, são uma referência ao excelente trabalho da Lua Valentia https://twitter.com/lua_valentia;
“Não culpes ninguém”, poema de Pablo Neruda: https://www.trilhasnouniverso.com.br/nao-culpes-ninguem/
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Obrigado Val Felix pela revisão do texto
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