Quando um artista dá tudo de si em um trabalho, e consegue realizar uma obra universalmente amada e querida, considerada por todos como sua obra-prima, dificilmente ele conseguirá se superar em um trabalho futuro, e, devido as expectativas gerais em cima dele, provavelmente muitos se decepcionarão com o projeto sucessor. Foi assim com a Disney, durante a renascença, depois do lançamento de O Rei Leão, foi assim com a Pixar e Toy Story 3, e é assim com Hayao Miyazaki e A Viagem de Chihiro. No entanto, enquanto com os dois primeiros exemplos o trabalho que seguiu suas ditas “obras primas” eram realmente falhos (para não dizer ruins), com o diretor japonês a queda não foi tão drástica assim. Apesar de O Castelo Animado não ter o mesmo impacto que seu antecessor teve, principalmente com os críticos, ainda colecionou elogios e críticas favoráveis a ele, sem falar que é um filme extremamente querido entre os fãs de Hayao, que não o consideram ruim, e, inclusive, os colocam junto de Chihiro, como se os dois filmes fossem igualmente bons e não devessem nada um ao outro.
Quanto a mim, eu realmente adoro O Castelo Animado, acho um filme totalmente criativo e esteticamente lindo, características obrigatórias em qualquer filme de Miyazaki. No entanto, apesar de não achá-lo ruim (não considero nenhum filme de Miyazaki totalmente ruim — levando em conta que ainda não vi Vidas ao Vento), consigo entender de onde vem as principais críticas à esta obra. Não é um filme perfeito, mas, pessoalmente, é um que eu amo muito.
Baseado em um livro da escritora britânica Dianna Wyne Jones, O Castelo Animado se passa em um universo onde magia existe, e bruxas e feiticeiros são figuras comuns na sociedade. Sophie é uma jovem e tímida chapeleira, que mora em um reino que, atualmente, se encontra em guerra com outro país. Um belo dia ela encontra um jovem e charmoso feiticeiro, que a acompanha até sua casa, sem saber que o rapaz em questão era o famoso Howl, extremamente popular entre as mulheres, mas um inimigo do governo, por se recusar a tomar parte na guerra, enquanto as demais pessoas com poderes mágicos estavam sendo recrutadas para lutar no conflito.
O encontro entre Sophie e Howl chama a atenção da Bruxa da Terra Abandonada, outra figura muito famosa entre as pessoas do reino, conhecida por sua perversidade e crueldade. Ela aparece para Sophie uma noite e a transforma em uma senhora idosa, com a condição de que ela não poderia falar sobre o feitiço com ninguém.
A protagonista, então, foge de sua casa, e, enquanto caminha por um campo, procurando um lugar para ficar, se depara com um castelo móvel, que anda sobre quatro patas. A senhora entra no local e se instala ali, sem saber que aquele é justamente o castelo de Howl. Quando o feiticeiro retorna, ela se apresenta como a nova faxineira do castelo, e passa a morar ali. No decorrer do filme, Sophie e os outros habitantes daquele lugar (tanto Howl, quanto Calcifer, um demônio em forma de uma chama que é responsável por movimentar o castelo, e Markl, um garotinho, aprendiz de feiticeiro) vão se aproximando e criando laços uns com os outros, aos poucos se transformando em uma família, enquanto a guerra cresce cada vez mais e os militares perseguem o bruxo, e ele tenta acabar com o conflito com as próprias mãos.
Mais uma vez me vi tendo que revelar algumas surpresas do filme para analisá-lo melhor, então deixo aqui um aviso de spoiler.
O maior tema que o filme aborda é a aversão de Miyazaki por guerras. Ele foi inspirado a fazer O Castelo Animado pela da Guerra do Iraque. Quando ganhou seu Oscar por A Viagem de Chihiro (premiação à qual ele se recusou a comparecer justamente em protesto contra a guerra, que acontecia na época), o diretor disse que tinha “muita raiva” em relação à Guerra do Iraque e então sentia “hesitação” em receber o prêmio. Inspirado por aquele conflito, o diretor quis criar um filme que não seria bem visto pela audiência estadunidense, e que colocasse o dedo na ferida, criticando as guerras e mostrando as nações que as causam como sendo egoístas e caprichosas.
De fato, ao longo do filme, o vilão principal do mesmo vai se mostrando o Estado. Como de costume, Miyazaki abre mão de maniqueísmos, e todos seus personagens demonstram possuir tanto um lado bom quanto um ruim; até mesmo a Bruxa da Terra Abandonada, que, em um primeiro momento, parece a vilã principal do filme, se transforma ao longo da história, e nós passamos a vê-la por um olhar mais generoso, entendendo suas fraquezas e fragilidades, enquanto ela, aos poucos, se torna uma pessoa melhor. A única personagem de O Castelo Animado que mantém uma postura hostil por todo o filme é Madame Suliman, a feiticeira oficial do rei.
Sophie a encontra pela primeira vez quando Howl a manda para o castelo real, em seu nome. Ela se passaria pela mãe do feiticeiro, e explicaria para o rei o porquê de ele não se engajar na guerra. Enquanto se direciona ao palácio, Sophie se encontra com a Bruxa da Terra Abandonada, que também estava indo ao castelo, tendo sido chamada lá pelo próprio rei. Ela está em uma carruagem, sendo carregada por criaturas mágicas de sua própria criação. No entanto, quando atravessa os portões do palácio, as tais criaturas desaparecem, e um guarda a informa que veículos não são permitidos daquele ponto em diante.
Na cena mais pesada do filme, somos forçados a ver Sophie e a Bruxa, duas senhoras já de uma certa idade, tentar subir as longas escadas do palácio. As duas fazem o percurso lentamente, ofegando e suando do início ao fim. Miyazaki não suaviza a situação, mostrando ao público toda a humilhação que as duas enfrentam naquele momento, principalmente a Bruxa, que antes era tão imponente, e agora demonstra toda a sua fraqueza, incapaz de subir as escadas. Tudo isso é visto pelos olhos dos guardas do palácio, que veem a situação, parados como estátuas e sem mover um dedo para ajudar as duas. Quando Sophie finalmente alcança o último degrau, e vê a outra mulher ainda lutando para subir, ela pede ao homem que veio recebê-la que mande alguém para a ajudar, para o que ele responde; “Nós somos proibidos de ajudar qualquer pessoa”. Nesta fala fica claro o individualismo do Estado, que está mais preocupado em lutar pelos próprios interesses, do que ouvir e auxiliar o seu povo, a quem ele deveria servir.