Imagine um mundo em que as pessoas não tenham endereço fixo, documentos, conta em banco, carteira assinada nem história. E que a vida deles passe despercebida, como se não existisse. Que a única certeza é que nunca faltará preconceito e ignorância, medo e fascínio, injustiças e alegrias ao longo de sua interminável jornada. Bem-vindo ao mundo cigano.
O universo cigano é tão antigo e extenso, tão cheio de crenças e histórias que nem mesmo seu próprio povo conhece bem o limite entre verdade e lenda. É que o nome “cigano” designa muitos povos espalhados por quase todas as regiões do mundo. Povos com diferentes cores, crenças, religiões, costumes, rituais, que, por razões às vezes difíceis de compreender, foram abrigados sob esse o imenso guarda-chuva (assim como populações muito diferentes são chamadas de índios).
A história dos ciganos é toda baseada em suposições. E a razão é simples: faltam documentos. Os ciganos são um povo sem escrita. Eles nunca deixaram nenhum registro que pudesse explicar suas origens e seus costumes. Suas tradições são transmitidas oralmente, mas nem disso eles fazem muita questão — os ciganos vivem o hoje, não se interessam por nenhum resquício do passado e não se esforçam por se manterem unidos. A dificuldade em se fixar, o conceito quase inexistente de propriedade e a forma com que lidam com a morte — eliminando todos os pertences do falecido — dificultam ainda mais o trabalho aprofundado de pesquisa.
Pouco se sabe sobre a origem dos ciganos — que, assim como quase tudo que diz respeito a eles, está marcada por fantasias. Alguns dizem que eles descendem de egípcios do tempo dos faraós. Outros, de uma região conhecida como “Novo Egito”, na Grécia — daí a palavra “cigano”, que vem de “egipciano”. Essa história, contudo, é totalmente descartada por estudiosos do assunto. Para eles, os ciganos teriam vindo do Paquistão e do norte da Índia, nos atuais Rajastão e Punjab. A maior prova disso vem de estudos lingüísticos. O romani, a língua falada por eles, possui grandes semelhanças com o hindi, falado na Índia. A análise biológica corrobora essa tese. Um estudo realizado com integrantes de comunidades ciganas da Europa demonstrou que era possível traçar a origem indiana de boa parte dos ciganos pesquisados.
Uma teoria, contudo, é aceita pela maioria dos especialistas. A partir da constatação da semelhança entre as línguas romani (praticada pelos rom, o maior dos grupos ciganos) e hindi (variação do sânscrito, praticada no noroeste da Índia, onde hoje fica o Paquistão), foi possível elucidar a primeira e grande diáspora cigana. Um grande contingente, formado, possivelmente, por uma casta de guerreiros, teria abandonado a Índia no século 11, quando o sultão persa Mahmoud Ghazni invadiu e dominou o norte do país. De lá, emigraram para a Pérsia, onde hoje fica o Irã. A natureza nômade de muitos grupos ciganos, entretanto, também permite supor um movimento natural de imigração que tenha chegado à Europa conforme suas cidades se desenvolviam, oferecendo oportunidades de negócios para toda sorte de viajantes e peregrinos.
Quem tem pressa vai na frente
Nós nascemos para esperar
Quem quiser chorar que chore
Nós nascemos para cantar
Nossa vida é a rua, nosso país é a lua
Somos amantes ciganos da liberdade lua
Nossa vida é a rua, nosso país é a lua
Somos amantes ciganos da liberdade lua
Sara, Maria sara rainha do manto azul
Guarda a nossa morada dos mares do norte e do sul
É provável que, pelo caminho, por volta do século 15, tenham passado pelo Pequeno Egito, uma região do Peloponeso, no interior da Grécia. Pelo menos era de lá que eles diziam vir a quem perguntava a sua origem. Daí o nome gypsy (em inglês), ou gitanos (em espanhol). Mas, antes disso, ainda no século 13, um documento escrito por um patriarca de Constantinopla já advertia sobre a presença dos adingánous, um povo errante que, dizia, ensinava coisas diabólicas. O registro é o primeiro a tratar os ciganos de forma pejorativa e a registrar o medo que as cidades europeias sentiam de suas caravanas. Era o começo da sina cigana.
Ciganos, ao contrário dos judeus, nunca demonstraram um desejo de ter o seu próprio país, assumindo-se párias. Nas palavras de Ronald Lee, escritor cigano nascido no Canadá, “a pátria dos Roma é onde estão os meus pés”.
“Desde o início do contato com o Ocidente, eles foram causa de conflitos, provocadores de desordem e subversivos ao sistema. E sofreram todo tipo de perseguições religiosa, cultural, política e racial”, diz Aluízio Azevedo, mestre em história cigana pela Universidade Federal de Mato Grosso e ele mesmo um cigano calon (veja mais abaixo na postagem a divisão dos grupos ciganos). É difícil saber o que veio primeiro: hábitos pouco ortodoxos ou o preconceito em relação a uma cultura tão diferente. Os ciganos tinham a pele escura, muitos filhos, uma língua indecifrável e origem desconhecida. Talvez a falta de oportunidades de emprego tenha sido a causa do seu destino artístico. Eram enxotados e então se mudavam, levando novidades dos lugares de onde vinham. Assim, surgiu a fama de mágicos, feiticeiros. Se todos acreditavam nisso, por que não aproveitar para fazer dinheiro? E, então, as mulheres passaram a ler as mãos, a prever o futuro. Negociar objetos era outra forma de sobrevivência: os ciganos tinham acesso a mercadorias “exóticas” e podiam levar sua tralha para onde quer que fossem.
Os bandos que chegavam ao continente europeu eram liderados por falsos condes, duques ou outros títulos de nobreza. Observando os peregrinos europeus, que entravam e saíam facilmente das cidades, copiaram a ideia de salvo-conduto — uma espécie de pai do passaporte. Os ciganos inventavam que seus documentos haviam sido expedidos por Sigismundo, rei da Hungria. Justificavam a vida nômade dizendo que bispos os haviam condenado a peregrinar durante 7 anos como penitência pelo abandono da fé cristã. Alguns dos salvos-condutos permitiam até que furtassem quem não lhes desse esmolas. Uma tática para aumentar a chance de ser aceitos nas comunidades, fazer negócios e exibir seus dons artísticos. Até que a farsa acabava e eles pulavam novamente para outra cidade.
“Parece que os ciganos vieram ao mundo somente para ser ladrões: nascem de pais ladrões, criam-se com ladrões, estudam para ser ladrões (…).”
– La Gitanilla, Miguel de Cervantes, 1613.
Durante a Reconquista Cristã de 1492, na península Ibérica, árabes, judeus e ciganos foram expulsos — muitos deles vieram para as Américas. Um século mais tarde, eram varridos da França, por Luís 12, e da Inglaterra, por Henrique 8o. Logo depois, a rainha Elisabeth 1a decretou que ser cigano era crime punido com morte. Uma das lendas que surgiram nessa época, e que até hoje perdura, é a de que um dos ferreiros que fizeram os pregos que prenderam Jesus na cruz era cigano. Por isso, sua gente teria sido amaldiçoada com uma vida nômade. E dessa forma construiu-se a imagem de povo errante, místico, perigoso e contraventor. Assim, no contato com as imagens construídas e alimentadas no Ocidente, foi criado o conceito de um povo cigano.